segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Avena Blues

Ecoa na barragem teu tropel vaporoso
Como de pântano, luz – pérola assim lamacenta;
Brilha do orco da senzala-voz, lamento assombroso
Como d'um talho de faca, lanho que arde e que aquenta.
Canta o fado da saudade. Tudo à volta é espinho aquoso –
Fundo cava, fundo cala, pois é canção: não se ausenta;
Muda as formas da maldade, rasga sulcos no meu rosto
Pra que a fome de minh'alma seja o sal que me alimenta.
É suor, é vida avante – sabe a sangue, sabe a lágrima,
Tua voz ecoa errante, verbo d'alma feita magma
Canta amor e adeus pulsando juntos num vagão de trem.
Quando ecoar canção esse amargo alumbramento,
De rasgar meu coração será teu meu sentimento
E contigo cantarei when all your love is in vain.


Santos, 8 de janeiro de 2004








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O CAPTIVO DE ANTARA
Crônicas e Presságios de uma alma jovem















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(Sexta, 7 de janeiro)
E finalmente a semana acaba. Sair do galpão e ganhar o pátio pra rodovia promete sempre, ainda mais com esses fins de tarde de céu limpo. Entro folgado numa carona que me deixará longe de onde quero ficar, mas foi bom não ter ido na van da firma. Sim, tem gosto bom contar com a miúda solidariedade de gente que a gente não conhece, bem mais que aproveitar a obrigação de um idiota. É pena que a única antipatia agora declarada contra mim é evidente a ponto de ser aguada, cansada pelo uso excessivo. S’eu pudesse viver isso mais discretamente, s’eu soubesse qu’ele guarda o pior da sua hostilidade pra soltá-lo sobre as minhas costas, aí sim, minha pacata rotina teria mais com que valer. Invejo isso nos neuróticos, que vivem como a chama... Capote certa vez pagou um pistoleiro de aluguel pra perseguí-lo enquanto cavava uma novela. Mas isso acabará em nada. S’ele fosse a única condução pro meu trabalho, talvez eu caminhasse de manhã com menos pressa. Confesso que é por descuido que eu ainda entro no único patrimônio que ele parece ter: a Besta verde caindo aos pedaços. Renata entra linda e tensa, gosto do seu jeito de ser presente, é esforçada... pena pra ela que o sorriso dele logo se desfez ao me perceber dentro do carro. Daí o pigmeu acha de dizer em alto e mal som que o RH tem que ficar atento “pra mode num entrá na firma esses mecânico maconhero”... Porque certa manhã descendo do carro dei co a porta num poste. Grande cena seguiu: o anão investindo feito boi bravo pelas coxias do estacionamento, com muito o que dizer sobre a minha mãe entre os dentes cerrados. Teve do povo que descera comigo quem risse com vontade e eu, sonolento guri que fugia, também ria, embora acuado feito um frango...

_ Peraí, doido! Ó-i-ó... Tá cagano teu sapato todo, ó...

Mas o pobre tinha perdido tudo com o rombo que não houve na tal da porta, e o belo par de tênis bege era caotizado pela lama preta entre os carros à beira da Marginal... É meu riso agora, enquanto o forte sol do fim de tarde acende meu rumo de volta, e vejo pelo retrovisor a firma ir ficando pra trás, agora qu’eu sei que é possível com a hora de acabar meu expediente eu ir folgado na boléia de uma carreta ao invés de m’espremer numa Besta cheia de boçal. Sei que muitos desses caminhões saem do nosso galpão rumo ao cais – é esticar o dedão na portaria e seguir pro centro velho, muito mais adiante de onde a van me deixa e bem mais perto do meu morro. Um caminho interessante... Bom eu estar prestes a descer da carona tendo vencido só o meio quilômetro de rodovia entre a firma e a boca da cidade; ainda há como fazer de um desvio acréscimo à caminhada. Meu momento tem algo de exultante, entusiasmo pela primeira carona do ano e a expectativa das que virão, eu ver cada vez mais que é possível encurtar o mundo com um polegar esticado à beira da estrada. Me dá bom fôlego pra ganhar o resto do caminho a pé. Além disso, não há pressa e antes de sair arranjei um bloco de folhas no almoxarifado. Tenho ânimo pra inaugurá-lo agora. Isto é, muito mais... ou tanto menos. Às vezes, parece coisa digna da maior admiração estar contente e saber por quê.


Fico na carona mais dois quarteirões além do combinado. Faz tempo quero fazer isso, visitar os lugares da minha primeira infância. Quase duas décadas passaram e meu rumo enraizou pra outros lados, me fez ficar completamente desconhecido nessa vizinhança... Vale revivê-la, eu acho... O bairro é o Chico de Paula. Desço na Nossa Senhora de Fátima e dobro na Santa Maria.

Mas é pouco. A rua mudou, a vizinhança é outra e o número 175, o velho sobrado, já é quase escombro. Da esquina se vê o encordado de sacos plásticos que faz as vezes de portão. Diante, ainda se pode ver as paredes e as janelas pregadas. Passo pelo quintal entulhado e entro no corredor do flanco até alcançar o que era a entrada da sala. Meus passos estalam alto e uma voz me corta, vinda do umbral sem porta, por onde vejo o que foi a cozinha com alguns móveis em pedaços, paredes pixadas e vestígios de fogo.

_ Tem isqueiro aê?
Não via ainda o tipo quando respondi que não.
_ Então sai andando!
Dou rápido meia volta, mas ele vem pra fora dizer que tava brincando. Não é jovem, mas tem um sorriso são.
_ Tu é padre? pergunta. _ Não, e você é pedreiro? _ Não, sou um astronauta...


No mínimo...



Volto ao quintal e faço de um pedaço de bloco de concreto um banquinho na calçada. Num instante revivo o panorama do menino de seis que há desesseis viveu por aqui. Diante de mim a mesma Santa Maria, rua alagadiça onde tantas vezes deixei sangue nas brincadeiras... Ficou a linda casa azul da confeiteira em frente, mas arrancaram o velho chapéu-de-sol. O que reconheço é vago. É paisagem com alguma coisa abortiva, sem dúvida, porque tenho vontade de escrever uma carta pr’um grande amigo, sentado ali, naquele pedaço de bloco, como repórter fazendo uma crônica dos escombros da guerra. Chego a escrever... Mas como é fácil se deixar levar por um espírito de lamúria em hora assim, como se a reminiscência fosse sempre a nostalgia e nosso ser fosse a mágoa pela derrocada do tempo e do olvido imposto às mais áureas lembranças – mas é mentira. Dizer que os processos da civilização, indiferentes como tratores, atropelaram o ninho da minha infância... E fazer essa rua com essa ruína ilustrar meu lugar no mundo? Conversa! Isso aqui já pendia à ruína antes que eu saísse daqui... bom, teve eu lotar o quintal com barquinhos de papel no alagar da chuva e passar pelas aventuras de uma cabana de lençóis em cima da cama, com um séquito de amigos de seda, anjos da noite estrelada em minha cabeça - eu crescer minh'alma pro céu e minhas mãos pras essas coisas de vulto... porém, levezas a parte, sinto que desde ali meu mundo é um empurrão. Com pais escravos de horas-extras, ao bel-prazer de irmãos delinquentes, o qu'esse lugar mais me ensinou foi ser um orfão em meio período.

(...)

Quando lembrei que eu tinha na bolsa um pote cheio de fatias de pão e pensei que talvez o astronauta tivesse pouco mantimento pra viagem, vejo vir uma morena que precisa de papel e caneta pra anotar algo pr’alguém. Tomara que ela goste de escritores tímidos, porque foi outra hora de acuado como frango... belo nome, Rúbia...






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Finda a primeira semana no trabalho, me sinto meio culpado por tomar a coisa toda como de costume, repórter da minha própria alma, alheio a prática, indigno da confiança dos meus...

Tenho relatórios a fazer, tarefas a descrever, um aprendizado e um mundo real a conquistar... mas olho minhas mãos e me deixo embasbacar pelo mistério do que ainda não criei. Só mesmo a loucura explica o que eu tô fazendo naquela oficina. Tá, meus pais foram metalúrgicos quase que a vida toda e eu pequeno fazia parte da mobília de uma fábrica porque minha mãe não tinha com quem me deixar e eu ficava ali... cresci em meio aos tornos e compressores, mas não cumprimentava quem tinha mão suja de graxa... pegava peças descartadas e criava castelos embaixo da mesa de inspeção, enquanto minha mãe inspecionava. Enfim, é sem duvida eu sentir o estranho fascínio do maquinário, do cenário caótico, das pareces sujas e do cheiro do diesel.

Quis por algum tempo ser maquinista, pilotar os trens no porto. Quando me calhava de não ver gente, ia pra ferrovia do Saboó. E perambulava por ali, pensando algum dia poder pular pra dentro d'um vagão de carga e seguir pra lá da serra... Fazer meu futuro passo a passo, aprender meu violão na estrada – isso sim seria um impulso! urgente cantar por comida... Terminei um curso de mecânica feito inteiro nas coxas, e agora tô estagiando numa oficina de caminhões á beira da estrada. Me sinto bem por isso... mas não sei o quanto estou disposto a aprender daquilo.

Bem por enquanto... pois lidar com gente é sempre um pacote de horrores, e lá o povo não parece ir co a nossa cara fácil... Ainda não sei quem posso ser ali. Mas certamente não o palhaço do curso...



terça-feira, 6 de julho de 2010


Era inverno no Rio. Chovia muito quando embarquei e com o resfriado, dormi sem notar direito o meu achado. Acabei mais de mês só com a pequena impressão da folheada que dei diante do guichê, fui ver do que se tratava a brochura já prestes a esquecê-la, meio que dando ombros, mal me perguntando o que se pode achar sob um balcão de rodoviária, soprando cansaço pelas tarefas que contribuem para que eu tenha uma curiosidade tão tardia. Achava que não seria mais que um diário ou um caderno de notas. Era um caderno sem estampa, azul. Tinha muitas folhas soltas e um contínuo palimpsesto de lápis. Meu despeito pela lixada caligrafia sumiu quando refleti na solitária nota da contracapa:


Sentir d’um presságio o caminho
Aberto nas várzeas do sonho –
Triunfo de ave sem ninho.

11/1/2005


Um amigo saudoso só escrevia a lápis. Respondendo-me por que, disse que para ele era “melhor malear o barro que ferir o mármore”; bela tentativa de tirar o barro debaixo das unhas, pensei. Mas lendo o manuscrito dessa brochura ganhei uma sensação mais jus com o sentimento do amigo. A caligrafia lixada induz uma veia impercebida, que a representação industrial da escrita põe em repouso – como um quadro austero é mais destacado pelo estimulo que dá para a retina em relação ao desinteresse visual que os ângulos da urbanidade deixa. Foi com esse fato que teimei mais quando li as primeiras páginas desse caderno. Até que a sombra da trama descrita me deu mais para perceber.

Em letras garrafais (sempre a lápis) o título pomposo -













O CAPTIVO DE ANTARA
Crônicas e Presságios de uma alma jovem







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